Jornal "Correio da Manhã",
7 de abril de 2003.
Em
Washington, o lóbi mais poderoso é o da National Rifle Association. Trata-se da
associação de armas de fogo, que defende livre acesso a armamento por parte de
todos, incluindo indivíduos que já demonstraram ter perturbações mentais.
O
presidente da associação é Charlton Heston, que foi recentemente entrevistado
por Michael Moore, um polémico escritor e realizador, há pouco tempo retratado
no programa “60 Minutos”, transmitido em Portugal pela SIC Notícias.
Moore
questionou o líder do movimento:
-
Porque é que a América é o país em que mais se mata com armas de fogo?
Com
efeito, nos EUA, são assassinadas 11127 pessoas por ano com recurso a tais
armas, por contraposição a 68 vítimas no Reino Unido.
A
surpreendente resposta de Heston foi:
-
É que nós temos uma maior mistura de etnias.
Os
opositores da liberdade no acesso a armas ficaram atónitos com a afirmação.
Como é que uma pessoa pode pensar que o facto de várias etnias conviverem no
mesmo espaço justifica uma matança entre civis?
Os
defensores da associação dizem que o jornalista explorou a idade avançada do
entrevistado.
Seja
como for, uma semelhante concepção da sociedade é inaceitável.
Mas
não deve ser exclusiva do Sr. Charlton Heston.
Há
uns anos atrás, participei em Taiwan num encontro internacional de juristas. Um
advogado norte-americano defendia que a razão de ser dos conflitos
inter-raciais em Los Angeles residia no facto de grande parte dos
estabelecimentos comerciais pertencerem a coreanos.
Para
os ocidentais e afro-americanos, a forma correcta e delicada de um balconista
dar o troco ao cliente é colocar-lhe as moedas na mão. O coreano julga que deve
pôr as moedas espalhadas em cima do balcão. Deste modo, o cliente pode, através
de um simples olhar, confirmar que a demasia está correctamente contada. Como o
lojista procede assim, o cliente ocidental interpreta tal como uma falta de
deferência, pois o comerciante obriga-o a transferir as moedas uma a uma para a
sua mão. Daí uma latente conflitualidade entre coreanos e ocidentais naquela cidade.
Ainda
que tal corresponda à verdade, ninguém de bom senso poderia pensar que a forma
de resolver esse problema seria distribuir armas por todos.
Com
efeito, dificilmente se encontrará país mais liberal nesta matéria do que os
Estados Unidos. Visitei por diversas vezes as Filipinas, país onde qualquer
pessoa pode ser portador de pistolas ou revólveres. Mesmo assim, na maior parte
dos hotéis, os hóspedes ou visitantes devem deixar as mesmas à entrada, ao
cuidado de um dos seguranças.
Em
Portugal, o acesso a armas de defesa é muito restrito e não é fácil obter a
respectiva licença de uso e porte. Quem não for taxista, dificilmente consegue
a licença.
Quanto
às armas de caça, torna-se necessário lançar uma pedagogia informativa no
sentido de esclarecer que a respectiva licença apenas permite o uso de tais
espingardas para o exercício da caça. O bom caçador sabe que a sua arma nunca
se destina a servir para defesa pessoal.
Infelizmente,
nem sempre assim sucede. Na minha vida profissional, vou-me deparando com casos
de uso indevido de caçadeiras.
Uma
jovem mãe solteira vivia sozinha numa habitação social de rés-do-chão, em zona
isolada. Quase todas as noites, um indivíduo chamava por ela e batia-lhe nos
estores, aterrorizando-a. Entretanto, a rapariga começou a namorar com um outro
senhor, tendo ambos passado a viver juntos naquela casa. Nem assim, a jovem
deixou de ser importunada.
Um
dia, cansado de tudo aquilo, o namorado da rapariga pegou numa caçadeira e
disparou sobre o homem. Felizmente, a distância fez com que os chumbos se
dispersassem e apenas ferissem a vítima. O tiro de caçadeira, quando disparado
de perto, é altamente mortífero, pois os grãos não chegam a espalhar-se,
causando um grande orifício. Mas, para bem de todos, não foi esse o caso.