Jornal "Correio da Manhã",
26 de maio de 2003.
Uma
das minhas irmãs foi telefonista de uma companhia petrolífera, durante algum
tempo. Logo nos primeiros dias, aprendeu por si própria que nunca deveria dizer
“senhor” ou “senhora”.
Sucedeu-lhe
algumas vezes pedir “aguarde um momento, minha senhora” e obter como resposta:
“sou um homem”. Noutras ocasiões perguntava: “o senhor dizia-me o seu nome?”.
Do outro lado da linha, ouvia: “Maria da Conceição”.
Quer
isto dizer que nem sempre um tom grave corresponde a uma voz masculina. Também
não é garantido que um timbre mais agudo identifique uma senhora.
Como
bem salientou um prestigiado criminologista, nas páginas do Correio da Manhã,
não deve causar estranheza alguém tratar por “menina” outra pessoa que lhe fala
ao telefone com voz grossa.
Ainda
mais complicado é asseverar que uma voz gravada é realmente de certa pessoa.
Aqui
há alguns anos, actuava, nos arredores de Lisboa, uma poderosa rede de tráfico
de droga.
Foram
realizadas escutas telefónicas que permitiram capturar uma série de suspeitos.
O
principal arguido era um homem abastado, que dizia ter enriquecido graças ao
seu negócio de artesanato. Para as autoridades policiais, aqulea actividade não
passava de uma fachada.
Foi-lhe
logo apreendido um potente Mercedes, novinho em folha, que ficou ao serviço de
um Ministério.
As
provas contra o indivíduo baseavam-se em gravações de conversas telefónicas
captadas através da intercepção de um telemóvel registado em nome dele.
Eram
quase diárias as encomendas de tapetes brancos e de tapetes castanhos. A cifra
era óbvia. Os primeiros respeitavam a transacções de heroína e os outros a
haxixe.
Em
julgamento, a defesa do arguido assentou em algo de muito simples. O telemóvel
pertencia-lhe a ele realmente, mas a voz não era a sua.
Foram
pedidos exames a um estúdio de gravação lisboeta e a um professor alemão de
fonética. Os resultados foram inconclusivos. Não era possível garantir que
aquela fosse a voz do arguido.
O
acusado foi absolvido e mandado em paz, depois de passar oito meses em prisão
preventiva.
Há
pouco tempo, julguei o caso de uma empregada de um estabelecimento comercial
que era acusada de insultar, pelo telefone, uma colega de outra loja. A
expressão mais suave que dissera fora “vaca”. Dispenso-me de reproduzir as
restantes.
A
vítima dizia que tinha atendido o telefonema com o sistema de alta voz
accionado. Para mais, o seu aparelho identificava no visor o número chamador.
Junto a ela, estavam a patroa e uma colega, que tudo ouviram, tendo-se ainda
apercebido que a chamada provinha da outra loja.
A
arguida negou tudo, dizendo que nunca fizera tal ligação nem dirigira à outra
aqueles epítetos.
Mesmo
dando crédito à patroa e à colega da ofendida, não pude condenar a senhora.
Nada me garantia que fora ela que fizera aquele telefonema.
Em
1991, Cavaco Silva foi reeleito primeiro-ministro, com maioria absoluta.
Logo
na noite das eleições um bem humorado imitador, em colaboração com um
semanário, pôs-se a fazer telefonemas, convidando ilustres personalidades para
integrarem o executivo. Todos, sem excepção, julgaram estar a conversar com o
estadista.
Por
tudo isto, na minha actividade profissional, tenho o máximo cuidado em apreciar
escutas telefónicas.