quarta-feira, 3 de abril de 2024

ESCUTAS TELEFÓNICAS

 Jornal "Correio da Manhã",

26 de maio de 2003.



Uma das minhas irmãs foi telefonista de uma companhia petrolífera, durante algum tempo. Logo nos primeiros dias, aprendeu por si própria que nunca deveria dizer “senhor” ou “senhora”.

Sucedeu-lhe algumas vezes pedir “aguarde um momento, minha senhora” e obter como resposta: “sou um homem”. Noutras ocasiões perguntava: “o senhor dizia-me o seu nome?”. Do outro lado da linha, ouvia: “Maria da Conceição”.

Quer isto dizer que nem sempre um tom grave corresponde a uma voz masculina. Também não é garantido que um timbre mais agudo identifique uma senhora.

Como bem salientou um prestigiado criminologista, nas páginas do Correio da Manhã, não deve causar estranheza alguém tratar por “menina” outra pessoa que lhe fala ao telefone com voz grossa.

Ainda mais complicado é asseverar que uma voz gravada é realmente de certa pessoa.

Aqui há alguns anos, actuava, nos arredores de Lisboa, uma poderosa rede de tráfico de droga.

Foram realizadas escutas telefónicas que permitiram capturar uma série de suspeitos.

O principal arguido era um homem abastado, que dizia ter enriquecido graças ao seu negócio de artesanato. Para as autoridades policiais, aqulea actividade não passava de uma fachada.

Foi-lhe logo apreendido um potente Mercedes, novinho em folha, que ficou ao serviço de um Ministério.

As provas contra o indivíduo baseavam-se em gravações de conversas telefónicas captadas através da intercepção de um telemóvel registado em nome dele.

Eram quase diárias as encomendas de tapetes brancos e de tapetes castanhos. A cifra era óbvia. Os primeiros respeitavam a transacções de heroína e os outros a haxixe.

Em julgamento, a defesa do arguido assentou em algo de muito simples. O telemóvel pertencia-lhe a ele realmente, mas a voz não era a sua.

Foram pedidos exames a um estúdio de gravação lisboeta e a um professor alemão de fonética. Os resultados foram inconclusivos. Não era possível garantir que aquela fosse a voz do arguido.

O acusado foi absolvido e mandado em paz, depois de passar oito meses em prisão preventiva.

Há pouco tempo, julguei o caso de uma empregada de um estabelecimento comercial que era acusada de insultar, pelo telefone, uma colega de outra loja. A expressão mais suave que dissera fora “vaca”. Dispenso-me de reproduzir as restantes.

A vítima dizia que tinha atendido o telefonema com o sistema de alta voz accionado. Para mais, o seu aparelho identificava no visor o número chamador. Junto a ela, estavam a patroa e uma colega, que tudo ouviram, tendo-se ainda apercebido que a chamada provinha da outra loja.

A arguida negou tudo, dizendo que nunca fizera tal ligação nem dirigira à outra aqueles epítetos.

Mesmo dando crédito à patroa e à colega da ofendida, não pude condenar a senhora. Nada me garantia que fora ela que fizera aquele telefonema.

Em 1991, Cavaco Silva foi reeleito primeiro-ministro, com maioria absoluta.

Logo na noite das eleições um bem humorado imitador, em colaboração com um semanário, pôs-se a fazer telefonemas, convidando ilustres personalidades para integrarem o executivo. Todos, sem excepção, julgaram estar a conversar com o estadista.

Por tudo isto, na minha actividade profissional, tenho o máximo cuidado em apreciar escutas telefónicas.


CONVENCER O JUIZ

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