Jornal “Correio da Manhã”,
25 de agosto de 2003.
Helder João Fráguas*
Um colega meu diz que o tribunal é o sítio
onde mais se mente. A primeira mentira que as testemunhas dizem é afirmar:
“Juro por minha honra dizer a verdade”.
Outro juiz, que percorreu inúmeras comarcas
de norte a sul do país, desenvolveu determinadas teorias sobre as zonas de
Portugal onde as pessoas mais mentem.
Sou um pouco céptico quanto a estas
generalizações, mas a verdade é que grande parte do trabalho de um juiz é
tentar descobrir quem está a falar verdade e quem mente.
Aquele que for testemunha e mentir perante
um juiz sujeita-se a pena de prisão até três anos ou multa até trezentos e
sessenta dias.
Raramente, remeto esses casos ao Ministério
Público.
Mas já o fiz algumas vezes.
Numa ocasião, um indivíduo, ainda jovem,
era acusado de conduzir um automóvel, ter avistado a brigada de trânsito e
parado a viatura uns metros antes, junto à berma. Trocou de lugar com a mulher,
que ia a seu lado, e quando passaram pela autoridade, foram mandados parar. Os
agentes nem quiseram saber da senhora, que ia ao volante. Submeteram o homem ao
teste de alcoolemia e este revelou um valor altíssimo.
Em tribunal, os três agentes relataram,
pormenorizadamente e com toda a coerência, que tinham visto o arguido a
conduzir o veículo.
Entrou depois a mulher dele, que se
oferecera para testemunhar e que não tinha escutado o depoimento dos guardas.
Alertei a senhora, como era meu dever, que
ela não era obrigada a ali estar, já que era casada com o arguido. Mas também a
adverti de que, caso pretendesse depor, teria de jurar dizer a verdade. Ela
aceitou ser testemunha.
Contou que sempre fora ela a condutora do
automóvel e que o marido não pegara no volante. O que ela dizia não oferecia a
menor credibilidade.
Eu compreendia o interesse dela em defender
o arguido. O homem era motorista profissional e caso ficasse com a carta
apreendida, provavelmente perderia o emprego.
Não tive outro remédio.
Mandei a testemunha sentar-se nas cadeiras
destinadas ao público e ditei a sentença.
Condenei o acusado a uma pena de multa e à
proibição de conduzir pelo período de três meses. Ao mesmo tempo, remeti para o
Ministério Público o caso do depoimento da sua mulher, que me parecia
corresponder a uma mentira.
A senhora baixou a cabeça e chorou
convulsivamente.
Não só o marido iria ficar desempregado
como ela teria um processo criminal às costas por falso testemunho.
Têm sido feitos numerosos estudos sobre os
sinais reveladores de quem mente.
É preciso prestar muita atenção a cada
palavra empregue.
Em 1995, dois filhos de um casal da
Carolina do Sul, nos Estados Unidos, desapareceram. Naquele momento de
desespero, o pai disse: “São ambas umas crianças maravilhosas”. A mãe afirmou:
“Eles eram a minha vida”. O tempo
verbal empregue, reportando-se ao passado, demonstrava que ela sabia que os
meninos tinham morrido. Na realidade, a progenitora, Susan Smith, tinha-os
afogado e escondido num lago.
Quando alguém diz a verdade, existe
harmonia entre as palavras, o movimento das mãos, a expressão facial e o tom de
voz. Uma discrepância entre estes factores manifesta normalmente uma mentira.
Os movimentos musculares da testa e do canto interior das sobrancelhas são
vitais, pois dificilmente são controláveis voluntariamente.
Note-se que o arguido não sofre qualquer
sanção se mentir. Nem isso faria sentido. Imagine-se que ele nega ter praticado
o crime, mas acaba por ser condenado. Seria ilógico estar depois a penalizá-lo
de novo por não ter dito a verdade.
*Juiz
( h j f r a g u a s
@ h o t m a i l . c o m )