quinta-feira, 4 de abril de 2024

MENTIR AO JUIZ

Jornal “Correio da Manhã”,

25 de agosto de 2003.

Helder João Fráguas*


Um colega meu diz que o tribunal é o sítio onde mais se mente. A primeira mentira que as testemunhas dizem é afirmar: “Juro por minha honra dizer a verdade”.

Outro juiz, que percorreu inúmeras comarcas de norte a sul do país, desenvolveu determinadas teorias sobre as zonas de Portugal onde as pessoas mais mentem.

Sou um pouco céptico quanto a estas generalizações, mas a verdade é que grande parte do trabalho de um juiz é tentar descobrir quem está a falar verdade e quem mente.

Aquele que for testemunha e mentir perante um juiz sujeita-se a pena de prisão até três anos ou multa até trezentos e sessenta dias.

Raramente, remeto esses casos ao Ministério Público.

Mas já o fiz algumas vezes.

Numa ocasião, um indivíduo, ainda jovem, era acusado de conduzir um automóvel, ter avistado a brigada de trânsito e parado a viatura uns metros antes, junto à berma. Trocou de lugar com a mulher, que ia a seu lado, e quando passaram pela autoridade, foram mandados parar. Os agentes nem quiseram saber da senhora, que ia ao volante. Submeteram o homem ao teste de alcoolemia e este revelou um valor altíssimo.

Em tribunal, os três agentes relataram, pormenorizadamente e com toda a coerência, que tinham visto o arguido a conduzir o veículo.

Entrou depois a mulher dele, que se oferecera para testemunhar e que não tinha escutado o depoimento dos guardas.

Alertei a senhora, como era meu dever, que ela não era obrigada a ali estar, já que era casada com o arguido. Mas também a adverti de que, caso pretendesse depor, teria de jurar dizer a verdade. Ela aceitou ser testemunha.

Contou que sempre fora ela a condutora do automóvel e que o marido não pegara no volante. O que ela dizia não oferecia a menor credibilidade.

Eu compreendia o interesse dela em defender o arguido. O homem era motorista profissional e caso ficasse com a carta apreendida, provavelmente perderia o emprego.

Não tive outro remédio.

Mandei a testemunha sentar-se nas cadeiras destinadas ao público e ditei a sentença.

Condenei o acusado a uma pena de multa e à proibição de conduzir pelo período de três meses. Ao mesmo tempo, remeti para o Ministério Público o caso do depoimento da sua mulher, que me parecia corresponder a uma mentira.

A senhora baixou a cabeça e chorou convulsivamente.

Não só o marido iria ficar desempregado como ela teria um processo criminal às costas por falso testemunho.

Têm sido feitos numerosos estudos sobre os sinais reveladores de quem mente.

É preciso prestar muita atenção a cada palavra empregue.

Em 1995, dois filhos de um casal da Carolina do Sul, nos Estados Unidos, desapareceram. Naquele momento de desespero, o pai disse: “São ambas umas crianças maravilhosas”. A mãe afirmou: “Eles eram a minha vida”. O tempo verbal empregue, reportando-se ao passado, demonstrava que ela sabia que os meninos tinham morrido. Na realidade, a progenitora, Susan Smith, tinha-os afogado e escondido num lago.

Quando alguém diz a verdade, existe harmonia entre as palavras, o movimento das mãos, a expressão facial e o tom de voz. Uma discrepância entre estes factores manifesta normalmente uma mentira. Os movimentos musculares da testa e do canto interior das sobrancelhas são vitais, pois dificilmente são controláveis voluntariamente.

Note-se que o arguido não sofre qualquer sanção se mentir. Nem isso faria sentido. Imagine-se que ele nega ter praticado o crime, mas acaba por ser condenado. Seria ilógico estar depois a penalizá-lo de novo por não ter dito a verdade.

 

*Juiz 

( h j f r a g u a s @ h o t m a i l . c o m )

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