Jornal "Correio da Manhã",
17 de novembro de 2003.
Referi-me
já ao caso de uma família lisboeta, que viu o lar invadido às sete da manhã,
por uma brigada policial, que ia fazer uma busca à procura de estupefacientes.
Enganaram-se foi no andar do prédio e colocaram de pantanas a residência de uns
inocentes, que, entretanto, foram conduzidos à esquadra. À hora do almoço, o
equívoco estava desfeito e o problema resolveu-se com uma indemnização.
Em
Outubro de 2000, no Tennessee, nos Estados Unidos, ocorreu uma situação
semelhante, mas de consequências mais graves.
Um
juiz ordenara uma busca a uma casa na Joseph Street, a ser levada a cabo pela
Unidade de Narcóticos. O número da porta era o 1120.
Por
qualquer estranha razão, os agentes foram dar com o nº 70. Bateram à porta. A
dona da casa, Lorine Adams, não a abriu porque os dois homens que ela avistava
pelo óculo não se identificavam. Não perdeu pela demora. A porta foi arrombada
e a senhora foi imediatamente algemada.
O
marido, John Adams, sofrera uma trombose algum tempo antes. Estava sentado no
sofá a ver televisão. Sete polícias irromperam pela casa dentro e dois deles
dispararam várias vezes contra o homem. Este chegou já sem vida ao hospital.
Morreu
um inocente. Só por causa de uma confusão com números de portas bem diferentes
entre si.
Preocupante
foi também o que se passou com Kerry Sanders, um jovem de 27 anos, que sofria
de esquizofrenia.
Em
Outubro de 1993, foi encontrado a dormir num banco de jardim, no Estado da
Califórnia. A polícia conduziu-o para a esquadra, a fim de ser identificado.
Por
azar, Kerry nascera exactamente na mesma data que o nova-iorquino Robert
Sanders. Este Robert era um fugitivo, condenado a prisão perpétua por tentativa
de homicídio.
Foi
rápida a conclusão dos agentes. O cartão da segurança social era falsificado e
ele estava a mentir quanto ao nome próprio.
Estenderam-lhe
um papel para ser assinado. Aí, o detido declarava que, na realidade, se
chamava Robert Sanders.
Este
homem, completamente inocente, passou dois anos na cadeia, até que o verdadeiro
criminoso foi capturado, por mero acaso, em Cleveland.
Durante
todo este tempo, o defensor oficioso não se lembrou de pedir uma comparação de
impressões digitais ou de ADN. Nem sequer foram confrontadas fotografias.
Também
a ninguém ocorreu outro pormenor. Em Julho de 1993, o verdadeiro Robert Sanders
estava preso em Nova Iorque, em cumprimento de pena. Nessa altura, Kerry fora
detido por vaguear nas ruas de Los Angeles. Logo, existiam realmente dois
Sanders: um chamado Robert e o outro Kerry.
Estes
dois episódios, bem conhecidos de quem se movimenta nos meios judiciais, são
recordados por Michael Moore no seu magnífico livro “Brancos Estúpidos”. Mais
popularizado como cineasta, ele é também um excelente escritor, a quem já me
referi nestas páginas. Neste livro, relata, de forma viva, impressionantes
acontecimentos ocorridos nos Estados Unidos da América. O tom é acentuadamente
crítico. Trata-se de uma obra de leitura altamente recomendável.