Jornal "Correio da Manhã",
19 de maio de 2003
O meu amigo Armando é
advogado, mas também escritor. Para passar momentos de lazer e dedicar-se à
escrita, construiu uma magnífica casa num local paradisíaco e aparentemente
muito sossegado. O diabo foi quando o dono do terreno vizinho resolveu instalar
na sua propriedade uma carreira de tiro aos pratos. Era uma barulheira infernal
durante todo o dia. Acabou-se a tranquilidade do Armando.
Conhecedor
das leis, ele lembrou-se que lhe assistiam direitos de personalidade, como seja
o direito ao sossego. Pôs um processo em tribunal contra o vizinho, pedindo a
extinção do campo de tiro.
A
acção judicial deu entrada, mas os seus trâmites não foram rápidos.
Certa
vez, quando o Armando se encontrava no estrangeiro, uns larápios penetraram no
interior da sua residência e preparavam-se para levar objectos de valor. A
sorte foi que o dono da carreira de tiro deu por tudo. Capturou os ladrões e
entregou-os às autoridades.
O
meu amigo ficou com uma dívida de gratidão para com o seu vizinho e réu no
processo judicial.
Claro
que o Armando desistiu de prosseguir com a acção e pôs termo à lide.
Acabou
por vender a casa, deixando os praticantes de tiro em paz.
Nada
me move contra os caçadores e os amantes de tiro desportivo.
Aliás,
acabo de inscrever a minha filha mais velha, de seis anos, no pentatlo moderno,
que, como se sabe, inclui corrida, natação, hipismo, esgrima e... tiro.
O
que é fundamental é saber distinguir entre armas de defesa e aquelas que se
destinam à caça ou ao tiro desportivo. Estas nunca podem ser encaradas como
equipamento de defesa. No Canadá, existe uma forte tradição de práticas
venatórias, mas a taxa de homicídios é baixíssima. Está inculcada a noção
civilizada de que as armas de caça não servem para defesa.
Enfatizo
também a necessidade de alertar as crianças e adolescentes para o perigo que
pode representar uma arma de fogo.
Quem
viu o programa “Hora Extra” de Conceição Lino, na SIC, sobre o tema,
apercebeu-se do fascínio que o armamento pode representar nos mais jovens.
Foi
exibida uma reportagem sobre um teste efectuado a adolescentes nos Estados
Unidos. Primeiro, foi-lhes ministrada uma acção de formação numa esquadra
policial, durante a qual se alertava para o que se devia fazer caso se
encontrasse uma arma de fogo. Basicamente, importava convocar a autoridade
policial.
Passadas
umas semanas, cinquenta desses jovens são submetidos a uma experiência. Um a
um, são colocados isoladamente num armazém de tintas, no âmbito de um programa
de ocupação de tempos livres. O que eles não sabiam é que estavam a ser
filmados. O encarregado dá instruções sobre a forma de arrumar os baldes e
deixa o adolescente sozinho. Ao transferir as latas, o jovem repara num saco de
papel com uma pistola lá dentro. Quase todos os rapazes tomam a mesma atitude:
fazem sua a arma e nada dizem ao encarregado quando ele regressa.
Quem
se interesse sobre a relação perigosa entre armas de fogo e crianças, não pode
deixar de ver o filme brasileiro “Cidade de Deus”, actualmente em exibição em
Portugal. As cenas são passadas numa das mais perigosas favelas do Rio de
Janeiro e baseiam-se em factos reais. A realização é de Fernando Meirelles e a
película conta com a magistral interpretação de dezenas de jovens actores.