quinta-feira, 4 de abril de 2024

CONVENCER O JUIZ

 Jornal "Correio da Manhã",

1 de setembro de 2003.



Quando o julgamento está prestes a chegar ao fim e já se ouviram todas as testemunhas, o juiz dá a palavra para alegações. Primeiro, pronuncia-se o Magistrado do Ministério Público, que elabora a acusação. Depois, fala o advogado do arguido. Cada um dispõe de uma hora, podendo o outro replicar durante vinte minutos.

É o momento crucial, em que cada um expõe ao juiz a sua posição sobre o que se passou no decorrer da audiência e procura explicar qual seria a solução que julga mais adequada.

Enquanto fui docente universitário e formador na Ordem dos Advogados, sempre chamei a atenção dos meus alunos para a necessidade de se exprimirem bem e exporem as suas ideias de forma convincente e clara.

Recordava-lhes que, muitas vezes, discutimos pontos de vista com outra pessoa, explicamo-nos o melhor que podemos, mas acabamos por ficar com a sensação amarga de não ter vencido.

Uma ou duas horas mais tarde, é que nos lembramos de determinados argumentos que poderíamos ter utilizado e que teriam derrotado a visão do nosso interlocutor. A sensação é terrível.

É, por isso, importante, conhecer algumas técnicas de argumentação, para que as possamos utilizar em qualquer circunstância.

Um primeiro método consiste em afirmar que a opinião do nosso adversário é demasiado radical. Toda a gente a aprecia o bom-senso e reconhece que no meio é que está a virtude. Se conseguirmos convencer que a posição contrária à nossa se situa fora desses limites, ganharemos uma batalha.

Deste modo, depois de o Ministério Público se pronunciar, o advogado de defesa poderá dizer:

- O Digno Procurador defende que o arguido deve cumprir dois anos de prisão efectiva. Parece-me que é uma posição demasiado extremista e fundamentalista. Em meu entender, o tribunal não deve ser tão radical. Poderá dar uma oportunidade ao arguido e suspender-lhe a pena. Se ele, depois, voltar a prevaricar, cumprirá a sua pena.

Uma outra alternativa é usar os números. A estatística é tida como ciência exacta e, contra factos, não há argumentos. De um modo geral, tendemos a pensar que a maioria tem razão. Se formos munidos de dados, avançamos muito. Imagine-se que o magistrado do Ministério Público, que é, por assim dizer, o advogado de acusação, afirma:

- Segundo uma sondagem recente, 72% dos portugueses pensam que é mais grave cometer um crime de dano do que um furto. É que quem furta, guarda o bem para si ou vende-o. Agora quem se limita a estragar um objecto de outra pessoa, fá-lo por pura maldade. Portanto, o arguido deve ser severamente punido.

Demonstrar que a posição do nosso adversário é insólita e invulgar é um método que resulta quase sempre. “É a primeira vez, em quinze anos de carreira, que ouço alguém defender que há legítima defesa quando a agressão já tinha terminado”: são palavras poderosas.

Há outro modo de convencer que a opinião contrária não tem valor. Trata-se de dizer que a conclusão a que o nosso interlocutor chegou parte de um princípio que não é verdadeiro. A primeira ideia está errada e, portanto, todos os outros raciocínios que se lhe seguem são falsos. Tudo cai pela base. Ou seja: partiu-se de um pressuposto errado e chegou-se a uma conclusão incorrecta.

Um advogado de defesa poderá alegar (embora a questão seja legalmente duvidosa):

- O Ministério Público sabe bem que só pratica o crime de furto quem subtrai um bem alheio. Ora o Digno Procurador parte do princípio de que o automóvel retirado pelo arguido é alheio em relação a ele. E depois conclui que foi cometido um crime. Mas parte de um pressuposto errado. A viatura foi comprada quando o arguido e a queixosa eram casados. Portanto, é um bem comum, que pertence a ambos. Não é, por isso, um bem alheio. O arguido deve, pois, ser absolvido.


OS MESTRES DO CRIME

 Jornal "Correio da Manhã",

14 de abril de 2003.



Num canal de televisão norte-americano, passava em tempos um programa semanal intitulado “Os criminosos mais estúpidos da América”.

A ideia nasceu na cabeça do produtor depois de este verificar que os seus filhos se entusiasmavam com séries do tipo “Mistérios por resolver”, que retratam casos de crimes perfeitos, em que a polícia é vencida.

Como contraponto, o profissional da televisão resolveu conceber um espectáculo em homenagem aos criminosos menos hábeis.

Na realidade, a maior parte dos delinquentes não são profissionais ou cérebros particularmente dotados. Muitos deles são alcoólicos ou toxicodependentes, cuja violência é irracional, estando dispostos a tudo para arranjar algum dinheiro. Outros são indivíduos perfeitamente normais, que um dia fizeram o maior disparate da vida deles.

Como muitos estabelecimentos e até vias públicas são dotadas de câmaras de vigilância com gravação, as respectivas cassetes de video permitiam fazer um divertido programa de televisão.

Eram inúmeros os casos de indivíduos que, apanhados com armas proibidas ou droga no bolso, explicavam que, na verdade, as calças não lhes pertenciam. Assim, desconheciam que aqueles objectos ali se encontravam. Como se fosse muito vulgar pedir emprestado um par de calças ... !

Um matulão com cerca de um metro e noventa disse até que os jeans que envergava pertenciam à namorada, que se encontrava ao seu lado. A rapariga tinha uma cintura correspondente a menos de metade da dele. Como o polícia chamou a atenção para o facto, o homem, sem perder a calma, disse: “É que ela emagreceu !”. É de presumir que a jovem não o tenha ido visitar muitas vezes à cadeia.

Aqui há tempos, deparei-me com um caso insólito.

Um indivíduo de 81 anos de idade vivia sozinho em casa. Às oito da manhã, acordou e não ganhou para o susto. Debaixo da sua cama, encontrava-se um assaltante a dormir, com uma meia de vidro enfiada na cabeça.

O dono da casa telefonou para a polícia. Os agentes da autoridade não conseguiram acordar o meliante, tão profundo era o seu sono. Levaram-no ao colo para a viatura policial e só a caminho da esquadra é que ele despertou.

O que é que se tinha passado? No dia anterior, o intruso estivera a beber até ficar completamente embriagado. Decidiu então ir assaltar uma casa. Quando já se encontrava lá dentro, ouviu o dono da mesma meter a chave à porta. Imediatamente, escondeu-se debaixo da cama. O tempo passou e a bebedeira convidou ao sono.

Interroguei-o e ele só me respondia que não se lembrava de nada. Apenas se recordava de acordar quando ia a caminho da esquadra.

Perguntei-lhe como é que se introduzira dentro da habitação, já que não havia sinais de arrombamento, fazendo presumir que ele recorrera a chaves falsas. Disse que não fazia a mínima ideia e ainda sugeriu que alguém o tivesse posto lá dentro de casa.

Abri um envelope e, com alguma repugnância, peguei na meia de vidro que ele tinha envergado, ao mesmo tempo que lhe perguntava porque razão a colocara na cabeça. Também me garantiu não saber para que serviria a meia.

Ele há com cada um...


CRIANÇAS E ARMAS DE FOGO

 Jornal "Correio da Manhã",

12 de maio de 2003.



Nestas páginas já me referi a Michael Moore, o cineasta que ganhou um Óscar para o melhor documentário pelo filme « Bowling for Columbine », actualmente em exibição em Portugal.

A película começa com imagens de um episódio real: Moore vai a uma agência bancária do North Country Bank, nos Estados Unidos, e abre uma conta. Em vez de lhe oferecerem um telemóvel ou uma torradeira, dão-lhe como prémio uma espingarda. A instituição anuncia nos jornais esta promoção, com a qual procura atrair novos clientes.

Todo o filme se desenvolve em torno da facilidade com que um norte-americano pode adquirir e legalmente possuir uma arma de fogo bem como sobre o número recorde de homicídios ocorridos anualmente naquele país.

Grande parte do documentário versa sobre a tragédia ocorrida na escola secundária de Columbine. Em Abril de 1999, dois estudantes abriram fogo sobre colegas, professores e funcionários, causando doze mortes e dezenas de feridos.

Michel Moore junta-se a dois dos feridos, um dos quais ficou paraplégico, movendo-se numa cadeira de rodas. O outro permanece com sequelas definitivas, não suportando ficar de pé durante um longo período. Ambos conservam os projécteis nos seus corpos.

As balas tinham sido compradas numa loja K-Mart, pertencente a uma cadeia de retalho com mais de dois mil estabelecimentos, onde se vendiam munições como quem comercializa pilhas para rádios.

Michel e os dois jovens deslocam-se à sede da K-Mart, pretendendo simbolicamente devolver as balas com que foram atingidos. São recebidos por uma funcionária, que vagamente promete estudar o assunto.

Desanimados, os três dirigem-se à loja K-Mart mais próxima, onde adquirem sem qualquer dificuldade todas as balas ali existentes para venda. Acompanhados de um batalhão de repórteres e «cameramen», voltam á sede da organização para entregarem o que acabaram de comprar.

Pouco tempo depois, Lori McTRavish, porta-voz da empresa, anuncia publicamente que a companhia deixará de comercializar munições para armas de defesa, no prazo de noventa dias.

São tocantes as cenas que relatam o triste episódio de uma mãe solteira que é despejada de casa, por falta de pagamento de renda. Desesperada, busca abrigo na casa de um irmão, onde se aloja com o filho se seis anos. Enquanto se encontra sozinha, a criança apodera-se da pistola do tio e mete-a na sua mochila. No dia seguinte, dispara sobre uma colega da com  a mesma idade, que vem a falecer.

O surpreendente é que a comunidade local dirige toda a sua raiva contra o menino se seis anos, pretendendo que ele seja submetido a julgamento como um adulto. Não lhes ocorre que o problema está na facilidade com que as crianças podem aceder a armas.

Ao assistir a esta parte do documentário, recordei-me de um caso dramático ocorrido há uns anos nos arredores de Lisboa. Um rapaz de doze anos pegou na caçadeira do pai e resolveu pregar um susto à sua tia, uma criança de onze anos de idade. Apontou-lhe a arma e, inadvertidamente, accionou o gatilho. O resultado foi a morte da rapariga.

«Bowling for Columbine» é um filme excepcional que reflecte sobre a atitude dos norte-americanos quanto ao uso e porte de armas de fogo.

Quem se interesse por este tema não pode deixar de ver o documentário, que para além do referido Óscar, foi galardoado com mais de 21 prémios em todo o mundo.


VIZINHOS DESAVINDOS

 Jornal "Correio da Manhã",

19 de maio de 2003



O meu amigo Armando é advogado, mas também escritor. Para passar momentos de lazer e dedicar-se à escrita, construiu uma magnífica casa num local paradisíaco e aparentemente muito sossegado. O diabo foi quando o dono do terreno vizinho resolveu instalar na sua propriedade uma carreira de tiro aos pratos. Era uma barulheira infernal durante todo o dia. Acabou-se a tranquilidade do Armando.

Conhecedor das leis, ele lembrou-se que lhe assistiam direitos de personalidade, como seja o direito ao sossego. Pôs um processo em tribunal contra o vizinho, pedindo a extinção do campo de tiro.

A acção judicial deu entrada, mas os seus trâmites não foram rápidos.

Certa vez, quando o Armando se encontrava no estrangeiro, uns larápios penetraram no interior da sua residência e preparavam-se para levar objectos de valor. A sorte foi que o dono da carreira de tiro deu por tudo. Capturou os ladrões e entregou-os às autoridades.

O meu amigo ficou com uma dívida de gratidão para com o seu vizinho e réu no processo judicial.

Claro que o Armando desistiu de prosseguir com a acção e pôs termo à lide.

Acabou por vender a casa, deixando os praticantes de tiro em paz.

Nada me move contra os caçadores e os amantes de tiro desportivo.

Aliás, acabo de inscrever a minha filha mais velha, de seis anos, no pentatlo moderno, que, como se sabe, inclui corrida, natação, hipismo, esgrima e... tiro.

O que é fundamental é saber distinguir entre armas de defesa e aquelas que se destinam à caça ou ao tiro desportivo. Estas nunca podem ser encaradas como equipamento de defesa. No Canadá, existe uma forte tradição de práticas venatórias, mas a taxa de homicídios é baixíssima. Está inculcada a noção civilizada de que as armas de caça não servem para defesa.

Enfatizo também a necessidade de alertar as crianças e adolescentes para o perigo que pode representar uma arma de fogo.

Quem viu o programa “Hora Extra” de Conceição Lino, na SIC, sobre o tema, apercebeu-se do fascínio que o armamento pode representar nos mais jovens.

Foi exibida uma reportagem sobre um teste efectuado a adolescentes nos Estados Unidos. Primeiro, foi-lhes ministrada uma acção de formação numa esquadra policial, durante a qual se alertava para o que se devia fazer caso se encontrasse uma arma de fogo. Basicamente, importava convocar a autoridade policial.

Passadas umas semanas, cinquenta desses jovens são submetidos a uma experiência. Um a um, são colocados isoladamente num armazém de tintas, no âmbito de um programa de ocupação de tempos livres. O que eles não sabiam é que estavam a ser filmados. O encarregado dá instruções sobre a forma de arrumar os baldes e deixa o adolescente sozinho. Ao transferir as latas, o jovem repara num saco de papel com uma pistola lá dentro. Quase todos os rapazes tomam a mesma atitude: fazem sua a arma e nada dizem ao encarregado quando ele regressa.

Quem se interesse sobre a relação perigosa entre armas de fogo e crianças, não pode deixar de ver o filme brasileiro “Cidade de Deus”, actualmente em exibição em Portugal. As cenas são passadas numa das mais perigosas favelas do Rio de Janeiro e baseiam-se em factos reais. A realização é de Fernando Meirelles e a película conta com a magistral interpretação de dezenas de jovens actores.


SEM DINHEIRO PARA ADVOGADO

 Jornal "Correio da Manhã",

5 de maio de 2003



Nem toda a gente tem meios económicos para recorrer a um advogado.

Para obviar a tal dificuldade, existe o apoio judiciário.

Este divide-se em três grandes áreas: informação jurídica, consulta jurídica e patrocínio judiciário.

A informação é essencial. Se os cidadãos não conhecem os seus direitos, nem sequer chegam a recorrer a uma consulta jurídica. Por exemplo, é importante informar que no caso de haver uma falha de fornecimento de electricidade e forem causados danos, o lesado tem o direito de pedir uma indemnização à EDP (que, aliás, dispõe de um seguro para o efeito). Imagine-se que se estraga carne congelada ou que se avaria um aparelho eléctrico. O prejuízo deve ser compensado.

A consulta jurídica é o passo seguinte. Tendo noção de que lhe assiste um direito, o particular deve consultar um advogado. Se não dispuser de meios, tem direito a uma consulta jurídica gratuita. O jurista aconselhá-lo-á sobre o caminho a adoptar.

Finalmente, importa assegurar o patrocínio judiciário. Quando há um litígio em tribunal, a parte interessada deve ser representada por advogado. Mais uma vez, se sofrer de carências económicas, deve ser nomeado um causídico, cuja retribuição será assegurada pelo Estado.

Além disso, caso se justifique, deve o interessado ficar dispensado de pagar a taxa de justiça.

Durante muito tempo, o apoio judiciário foi incipiente e praticamente consistia na nomeação oficiosa de advogado ou advogado estagiário que recebia uma remuneração absolutamente irrisória, chegando-se até ao seguinte absurdo: no caso de o réu ser absolvido, o profissional do foro nada recebia. A informação jurídica e a consulta jurídica eram miragens.

Em 1987, foi institucionalizado um sistema de apoio judiciário sólido, que permitiu satisfazer as necessidades dos mais carenciados.

Algumas dificuldades foram-se fazendo sentir ao longo da vigência deste sistema.

O apoio judiciário centrava-se em decisões do juiz da comarca. Perdia-se tempo com averiguações e pedido de parecer ao Ministério Público. O magistrado judicial acabava por desempenhar um papel que nada tem que ver com a sua função, que é a de proferir decisões sobre litígios ou a eventual prática de crimes.

O esquema de remunerações aos advogados era também complexo e mais uma vez excessivamente dependente do critério do juiz, que atribuía honorários dentro de certos limites, sem que realmente dispusesse de elementos que lhe permitissem fazer um cálculo adequado. Abria-se o flanco a críticas. Recordo-me de um advogado uma vez me dizer que certo juiz conferia melhores remunerações a jovens e esbeltas advogadas do que aos seus colegas do sexo masculino. A observação era provavelmente injusta, mas demonstrava que os juízes se expunham desnecessariamente em função de se verem forçados a tudo decidir em matéria de apoio judiciário.

Em 2000, o sistema de apoio judiciário foi reformulado. Grande parte dos pedidos de apoio judiciário passaram a ser tratados nos serviços da Segurança Social, organismo com muito mais sensibilidade para aferir da carência económica de um indivíduo.

Decorrido algum tempo sobre a criação do novo sistema, verificaram-se algumas falhas, tendo assumido dimensões preocupantes os atrasos no pagamento aos defensores.

Importava de novo repensar o esquema de apoio judiciário.

Em boa hora, foi decidido criar o Instituto de Acesso ao Direito, a funcionar sob a égide da Ordem dos Advogados. A Segurança Social continuará a apreciar se o cidadão se encontra em situação de carência económica, mas todo o processo de apoio judiciário competirá a este novo organismo, com vocação específica para o assunto.

Estou seguro de que quem, por necessidade económica, recorrer ao novel Instituto de Acesso ao Direito será melhor servido.


CHRISTIANIA

 Jornal "Correio da Manhã",

28 de abril de 2003.



Durante a guerra de 2003 no Iraque, que levou ao derrube de Saddam Hussein, encontrava-me na Dinamarca. Estava a frequentar um curso de preparação para regiões em crise. Diferentes atitudes perante a vida não me surpreenderam, graças à prévia introdução que me foi feita pela leitura do respectivo guia da Lonely Planet, colecção a que recorro sempre que me desloco ao estrangeiro.

Como rotário cumpridor, visitei o Rotary Club local, o Copenhagen Morning, que se reúne às quartas-feiras, ao pequeno-almoço. No dia em que participei, o convidado de honra e palestrante era nem mais nem menos do que o Rei da Pornografia da Dinamarca, produtor de filmes da especialidade. Não era de estranhar. Afinal encontrava-me no país da Europa que primeiro liberalizou a pornografia.

Uma das formadoras do curso que frequentei na Escola de Administração Pública de Copenhaga era casada com outra senhora, o que se compreende perfeitamente já que são legais os matrimónios entre pessoas do mesmo sexo.

O mais original da Dinamarca é o Estado Livre da Christiania, em plena Copenhaga.

Em 1971, um numeroso grupo de pessoas, incluindo hippies, freaks, adeptos da macrobiótica, artistas e outros que buscavam modos de vida alternativos ocuparam umas instalações militares desactivadas e formaram uma comunidade com governo próprio.

Ao entrar em Christiania, ainda pude captar uma fotografia junto ao pórtico que dá as boas vindas aos visitantes. Mas passando aquele ponto, já não tive hipótese de utilizar a máquina fotográfica. Numerosos sinais recordam que é proibido captar imagens.

Compreende-se porquê.

É que no recinto dos quiosques, encontram-se expostas para venda barras de haxixe (a que em Portugal chamam sabonetes) e marijuana bem como todo o material necessário ao consumo daquelas drogas. As etiquetas identificam a origem do produto. Os consumidores dispõem de bares onde podem apreciar os estupefacientes.

A transacção e o consumo de drogas duras está, porém banida.

O tráfico de estupefacientes não é lícito na Dinamarca. Mas as autoridades não têm conseguido deter a sua venda em Christiania. Em 1992, a Polícia lançou uma operação envolvendo 70 homens tendo em vista acabar com tal comércio. O braço-de-ferro com os habitantes durou oito meses e terminou com a retirada dos agentes, após a intervenção dos Ministros da Defesa e da Justiça.

Em Março deste ano, os vendedores de droga locais fizeram uma greve e durante uma semana não traficaram estupefacientes em protesto pelo projecto oficial de terminar com Christiania. Simultaneamente, os residentes recolheram assinaturas de cidadãos favoráveis à manutenção daquela comunidade.

Para além das casas dos habitantes, o Estado Livre conta com um infantário, lojas, oficinas e fábricas bem como um sistema de recolha de lixo próprio.

Frequentemente, são organizados concertos de música e exposições abertos à população.

As decisões que afectam a comunidade, como admitir novos membros ou autorizar a instalação de quiosques são tomadas por unanimidade.

Embora não existam leis, há quatro proibições básicas: utilização de drogas duras, posse de armas, violência e comercialização de espaços habitacionais.


FOTOGRAFIAS SECRETAS

 Jornal "Correio da Manhã",

21 de abril de 2003



Acompanhei com interesse o desfecho do julgamento que opôs o actor Michael Douglas e sua mulher Catherine Zeta-Jones à revista inglesa “Hello!”.

O par casou-se em Novembro de 2000 numa cerimónia orçada em 1,9 milhões de euros, que decorreu num hotel em Nova Iorque. Reuniram-se 350 convidados, entre os quais se contava o Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan. Cada um deles assinou uma declaração na qual se comprometia a manter confidencialidade sobre a cerimónia e a não captar fotografias.

Apenas um fotógrafo foi autorizado a levar a sua máquina, sendo os retratos vendidos à revista britânica “OK!” por 1,6 milhões de euros.

O diabo é que um intruso, filho de um conhecido político inglês, penetrou no recinto da festa. Trazia escamoteada na cintura uma máquina fotográfica e desatou a captar imagens, que foram publicadas pela “Hello!”.

Numa das fotografias, via-se Michael Douglas a enfiar uma garfada de bolo na boca da noiva. As más-línguas chamaram logo comilona à actriz: Catherine “Eater” Jones.

A actriz intentou uma acção, num tribunal londrino, contra a revista.

Alegou que sofrera danos morais significativos devido ao desgosto e aos comentários que a reportagem fotográfica clandestina provocara. Exigia uma indemnização de 2,8 milhões de euros.

O julgamento teve momentos especiais.

O advogado da “Hello!” insistia que tudo não passava de uma questão de dinheiro e que Catherine não teve nenhum sofrimento psicológico.

Referindo-se à quantia recebida pela outra revista, a actriz respondeu-lhe em plena sala de audiências: “1,6 milhões de euros é muito dinheiro para as pessoas que estão nesta sala, mas não é assim tanto para mim”. Fez-se um profundo silêncio no tribunal.

A representante da revista também deu mostras de algum pedantismo.

A Marquesa de Varela, de ascendência uruguaia, admitiu saber que o paparazzo iria infiltrar-se no decorrer da cerimónia.

Confrontada com a fraca qualidade das fotografias assim captadas, quando comparadas com as imagens oficiais, a testemunha disse: “Não se pode comparar a Armani com a Zara”.

O juiz Lindsay acabou por dar razão a Catherine Zeta Jones e condenou a revista a indemnizá-la em montante ainda por determinar. O mais natural é agora ser interposto recurso da decisão.

Em Portugal, recentemente ia-se gerando um imbróglio por causa do casamento de uma conhecida apresentadora de televisão. Uns dias antes da cerimónia, uma revista publicou na capa uma fotografia da celebridade com o seu vestido de noiva. Afinal, tudo não passava de uma montagem. Falou-se em processos judiciais, mas as partes acabaram por se entender.

Nos tempos do Estado Novo, ocorreu um episódio curioso.

Em 1951, Coimbra acolheu o Congresso da União Nacional, a associação cívica que apoiava o Governo.

Os organizadores decidiram que, na sala de entrada, deveria figurar uma fotografia gigante de Salazar. Sendo o ditador professor universitário daquela cidade, impunha-se que surgisse com as vestes doutorais, de capelo e borla. Todavia, o Presidente do Conselho nunca tinha sido fotografado com tal indumentária.

Resolveram então pedir ao delfim de Salazar, o Professor Marcello Caetano, uma fotografia deste, de capelo e borla. Substituíram a cabeça pela de Salazar e realizaram uma fotomontagem que parecia perfeita.

O único problema é que Salazar cultivava uma imagem de solteirão, exclusivamente dedicado aos assuntos de Estado. Ora na enorme fotografia, ele aparecia com uma aliança de casamento na mão esquerda: a de Marcello Caetano.


UM PAÍS SEM SUPREMO TRIBUNAL

 Jornal "Correio da Manhã, 

7 de julho de 2003.



Que me perdoem os leitores menos interessados em questões político-constitucionais.

Todavia, gostaria de abordar o tema da separação de poderes.

Desde a revolução francesa de 1789, tem-se difundido, por todas as democracias, a ideia de que deve haver uma divisão entre os poderes legislativo, executivo e judicial.

Os deputados aprovam, no Parlamento, as leis. O Governo gere a Administração Pública. Os juízes aplicam a lei.

Todos são independentes uns dos outros.

No que toca aos juízes, nem o Governo nem a Assembleia da República podem interferir no exercício das suas funções. Em contrapartida, aos magistrados judiciais está vedada a actividade político-partidária, a não ser, claro, que peçam a suspensão do serviço.

O papel dos tribunais é controlado pelo Conselho Superior da Magistratura, um órgão independente do Governo.

O recrutamento de juízes é realizado através de prestação de provas públicas e aprovação num curso de formação. Os juízes não são designados pelo Governo ou pela Assembleia da República. São nomeados, com carácter permanente, pelo mencionado Conselho Superior, o que dá garantias de independência. Não devem favores a ninguém nem podem ser afastados do seu lugar por terem tomado determinada decisão. São pouco susceptíveis de serem pressionados.

Está-se, portanto, muito distante da imagem paradigmática do Rei Salomão, que fazia as leis, governava o país e ainda desempenhava o papel de juiz.

O monarca ficou famoso pela sua decisão quanto ao bebé que era disputado por duas alegadas mães. Salomão resolveu que a criança seria cortada ao meio, ficando cada mulher com uma metade. Uma delas aceitou. A outra disse preferir que poupassem a vida do bebé e que este fosse dado por inteiro à sua adversária. Tornava-se claro quem era a verdadeira progenitora e o Rei mandou entregar-lhe a criança.

Actualmente, semelhante mistura de papéis é dificilmente imaginável.

Contudo, numa das mais antigas democracias do mundo, as coisas passam-se de forma algo duvidosa.

Por isso, Tony Blair, o primeiro-ministro inglês, quer implementar uma reforma do sistema judicial do seu país.

No Reino Unido, não existe um Supremo Tribunal, para o qual os cidadãos insatisfeitos possam recorrer. Os recursos são dirigidos para a Câmara dos Lordes, que detém o poder legislativo, em conjunto com a Câmara dos Comuns.

O objectivo é criar um Supremo Tribunal e abolir o cargo de “Lord Chancellor”. Este é juiz, nomeia juízes, preside à Câmara dos Lordes e participa no Conselho de Ministros.

É claro que há algumas resistências relativamente a fazer cessar esta figura, que conta com 1400 anos de tradição.

Mas são muitos os Lordes de Lei que apoiam as propostas de Blair. Eles pensam que não é compatível discutir propostas de lei e, ao mesmo tempo, fazer julgamentos.

Mesmo outros aspectos considerados mais retrógrados do sistema judicial estão agora a ser postos em causa.

Muitos defendem que juízes e advogados devem deixar de usar cabeleira no decorrer dos julgamentos. A origem da utilização deste adereço prende-se com a vontade de que os réus não reconhecessem os magistrados quando estes andassem pela rua. A manutenção do seu uso não parece fazer muito sentido, hoje em dia.


PRESO POR ENGANO

 Jornal "Correio da Manhã", 

17 de novembro de 2003.



Referi-me já ao caso de uma família lisboeta, que viu o lar invadido às sete da manhã, por uma brigada policial, que ia fazer uma busca à procura de estupefacientes. Enganaram-se foi no andar do prédio e colocaram de pantanas a residência de uns inocentes, que, entretanto, foram conduzidos à esquadra. À hora do almoço, o equívoco estava desfeito e o problema resolveu-se com uma indemnização.

Em Outubro de 2000, no Tennessee, nos Estados Unidos, ocorreu uma situação semelhante, mas de consequências mais graves.

Um juiz ordenara uma busca a uma casa na Joseph Street, a ser levada a cabo pela Unidade de Narcóticos. O número da porta era o 1120.

Por qualquer estranha razão, os agentes foram dar com o nº 70. Bateram à porta. A dona da casa, Lorine Adams, não a abriu porque os dois homens que ela avistava pelo óculo não se identificavam. Não perdeu pela demora. A porta foi arrombada e a senhora foi imediatamente algemada.

O marido, John Adams, sofrera uma trombose algum tempo antes. Estava sentado no sofá a ver televisão. Sete polícias irromperam pela casa dentro e dois deles dispararam várias vezes contra o homem. Este chegou já sem vida ao hospital.

Morreu um inocente. Só por causa de uma confusão com números de portas bem diferentes entre si.

Preocupante foi também o que se passou com Kerry Sanders, um jovem de 27 anos, que sofria de esquizofrenia.

Em Outubro de 1993, foi encontrado a dormir num banco de jardim, no Estado da Califórnia. A polícia conduziu-o para a esquadra, a fim de ser identificado.

Por azar, Kerry nascera exactamente na mesma data que o nova-iorquino Robert Sanders. Este Robert era um fugitivo, condenado a prisão perpétua por tentativa de homicídio.

Foi rápida a conclusão dos agentes. O cartão da segurança social era falsificado e ele estava a mentir quanto ao nome próprio.

Estenderam-lhe um papel para ser assinado. Aí, o detido declarava que, na realidade, se chamava Robert Sanders.

Este homem, completamente inocente, passou dois anos na cadeia, até que o verdadeiro criminoso foi capturado, por mero acaso, em Cleveland.

Durante todo este tempo, o defensor oficioso não se lembrou de pedir uma comparação de impressões digitais ou de ADN. Nem sequer foram confrontadas fotografias.

Também a ninguém ocorreu outro pormenor. Em Julho de 1993, o verdadeiro Robert Sanders estava preso em Nova Iorque, em cumprimento de pena. Nessa altura, Kerry fora detido por vaguear nas ruas de Los Angeles. Logo, existiam realmente dois Sanders: um chamado Robert e o outro Kerry.

Estes dois episódios, bem conhecidos de quem se movimenta nos meios judiciais, são recordados por Michael Moore no seu magnífico livro “Brancos Estúpidos”. Mais popularizado como cineasta, ele é também um excelente escritor, a quem já me referi nestas páginas. Neste livro, relata, de forma viva, impressionantes acontecimentos ocorridos nos Estados Unidos da América. O tom é acentuadamente crítico. Trata-se de uma obra de leitura altamente recomendável.


DINHEIRO DEITADO À RUA

Jornal “Correio da Manhã”,

30 de junho de 2003.


Opinião

Helder João Fráguas*

Actualmente, é muito mais fácil carregar o saldo do telemóvel, numa caixa multibanco.
Já não são necessários os números relativos à entidade e à referência.
Tudo o que há a fazer é escolher o operador e inscrever o número do telefone.
A filha de um amigo meu pediu ao pai que lhe carregasse o saldo do seu telemóvel. O problema é que passaram-se horas e não havia meio de o saldo ficar actualizado.
Ele foi então verificar o talão da caixa. Verificou que se tinha enganado ao digitar um algarismo. Tinha feito um carregamento para outro telemóvel, cujo dono, embora surpreendido, deve ter ficado todo feliz.
O meu amigo ligou para a assistência ao cliente. Disseram-lhe que nada havia a fazer. O lapso era imputável a ele e, portanto, era impossível proceder a qualquer rectificação.
Ele contou-me o episódio acidentalmente e com ar resignado. Eu expliquei-lhe que alguma coisa estava mal naquele procedimento. Ao adoptarem este novo sistema de carregamento, os operadores já deveriam ter previsto que a probabilidade de existir um erro aumenta com a simplificação do procedimento.
Havia que dar formação adequada aos assistentes, ensinando-lhes o que fazer nestas situações.
Admito que, no caso em apreço, tal não tenha sido realizado. A assistente, que atendeu o meu amigo, terá decidido ela própria, por auto-recriação, que nada haveria a fazer nesse caso. Ao invés, deveria ter tomado nota da reclamação e expô-la aos seus superiores.
Não quero acreditar que tenham existido algumas instruções, no sentido de os assistentes informarem os clientes que, em caso de lapso, não há solução. É que, do ponto de vista legal, as coisas não se passam assim.
O que sucede é um erro na declaração de vontade por parte de quem procede ao carregamento.
Para quem é beneficiado com o carregamento que não lhe era destinado, existe um enriquecimento sem causa. São tudo situações previstas no Código Civil, que consagra a justa solução para o caso: a devolução do dinheiro a quem, por lapso, carregou o telemóvel de outrem.
Espero que seja dada a devida atenção a casos futuros, salvaguardando os direitos dos consumidores, que, felizmente, são cada vez melhor defendidos.
Figuras como Beja Santos, Mário Frota, João Nabais ou Joaquim Carrapiço têm dado um valioso contributo para que os clientes sejam respeitados no que concerne às transacções em que diariamente estão envolvidos. A Associação Portuguesa de Direito do Consumo, a DECO, a Associação dos Consumidores de Portugal e o Instituto do Consumidor são as principais entidades a quem podemos recorrer no caso de nos sentirmos prejudicados.
Também a comunicação social tem desenvolvido um importante trabalho, ao divulgar casos reais de empresas que não adoptam um comportamento correcto, esclarecendo se o litígio foi ou não resolvido. É o que faz, por exemplo, a revista "Mulher", distribuída às sextas-feiras com o Correio da Manhã, na rubrica "Os Seus Direitos".
Do mesmo modo, na Internet existe um ‘site’ utilíssimo, que se localiza em www.queixas.co.pt. Aí são registadas as reclamações apresentadas pelos consumidores e as eventuais respostas das empresas postas em causa. Este instrumento é precioso para quem pretende apresentar uma queixa, mas também para aqueles que querem avaliar a atitude dos agentes económicos que actuam no mercado. Antes de fazer uma compra, vale a pena fazer uma consulta e ver o que se diz a propósito da firma com quem vamos negociar.
Muitos municípios contam com um relevante organismo na Câmara Municipal, denominado Centro de Atendimento e Informação ao Público (CAIP). Para resolução de pequenos litígios com entidades situadas na nossa área de residência, este meio é ideal.

*Juiz 

( h j f r a g u a s @ h o t m a i l . c o m )

 

OS FUTUROS JUÍZES

 

Jornal “Correio da Manhã”,

8 de dezembro de 2003.

 

Embora faça muito esforço para não cometer injustiças no meu quotidiano, sei que vou praticar uma neste preciso momento.

Referirei o nome de alguns dos professores que mais me marcaram na Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. Vão-me escapar várias personalidades, que foram fundamentais na minha formação enquanto jurista. Mas não se podem resumir cinco anos de estudos numa crónica de jornal. Perdoem-se, pois, algumas omissões.

Recordo a capacidade intelectual e pedagógica de Jorge Miranda, Marcelo Rebelo de Sousa, Marques Guedes, Menezes Cordeiro, Bracinha Vieira, Lebre de Freitas, Romano Martinez, Fernanda Palma, Curado Neves, Rui Pereira e Raul Soares da Veiga.

Não estranhe o leitor a falta de alusão a Freitas do Amaral, André Gonçalves Pereira, Garcia Pereira ou José António Barreiros, de quem não fui discípulo.

Um Mestre que se impõe mencionar é Saldanha Sanches, que me ensinou Finanças Públicas e Direito Financeiro. Foi um enorme privilégio ter sido seu aluno.

Mais conhecido como fiscalista, é também um comentador de gabarito sobre os temas jurídicos em geral.

Há pouco tempo, referiu-se àquilo a que chamou o “bunker judicial”.

Se bem entendi as suas palavras, defendeu que se deve abandonar o isolamento judicial, o corte com o exterior assim como o divórcio entre a carreira dos juízes e as demais actividades jurídicas.

De acordo com a Constituição, os tribunais aplicam a lei em nome do povo. Tal leva até muitos juízes a iniciar as suas sentenças, com a frase: “Em nome do Povo Português, decido”.

Afirmou Saldanha Sanches: “Pobres do povo e dos tribunais se o povo deixa de se reconhecer nas suas decisões judiciais”.

Concordo, de uma forma geral, com o que ele preconiza.

Mas talvez não seja tão pessimista quanto ao sistema actual.

A escolha dos candidatos a juízes é realizada de modo muito aberto, através de um júri integrado por profissionais de diversas áreas.

Faz-se até uma entrevista psicológica, de carácter eliminatório. Certa vez, uma psicóloga, que efectuou várias entrevistas, disse algo de curioso. Deve ser difícil ser juiz quando, por falta de maturidade, ainda nem sequer se está habituado a decidir entre beber água ou vinho.

É verdade que grande parte da formação é levada a cabo por magistrados. Mas são realizadas acções com profissionais dos mais diferentes campos do saber. Médicos, psicólogos, polícias, sociólogos, quadros superiores da administração pública, jornalistas, professores e contabilistas trocam impressões com os futuros juízes.

Reconheço que há aperfeiçoamentos a levar a cabo, nomeadamente no domínio da formação de formadores. Para se ensinar, tem que se saber como se faz a transmissão de conhecimentos e a troca de experiências. Não é suficiente a boa vontade.

Antes de ser designado docente da Ordem dos Advogados, frequentei um curso de formação de formadores da área jurídica, leccionado por dois professores treinados nos Estados Unidos da América. Nunca me sentiria capaz de dar aulas a advogados estagiários se não tivesse recebido prévia instrução.

Este é um campo que importa desenvolver.

Por outro lado, diz Saldanha Sanches que algo está mal quando os juízes não conseguem elaborar decisões com suficiente força convincente para poderem gozar de um mínimo de acatamento.

Desconheço se isso sucede muitas ou poucas vezes. Sei que é impossível agradar a gregos e a troianos e que as sentenças são sempre susceptíveis de crítica. Mas é dever do juiz explicar por escrito os motivos pelos quais tomou determinada decisão. Tem sido posta a maior atenção nesse aspecto.

*Juiz 

( h j f r a g u a s @ h o t m a i l . c o m )

 

UM HOTEL NO LIMOEIRO

 


Jornal “Correio da Manhã”,

8 de setembro de 2003.

 

Embora faça muito esforço para não cometer injustiças no meu quotidiano, sei que vou praticar uma neste preciso momento.

Referirei o nome de alguns dos professores que mais me marcaram na Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. Vão-me escapar várias personalidades, que foram fundamentais na minha formação enquanto jurista. Mas não se podem resumir cinco anos de estudos numa crónica de jornal. Perdoem-se, pois, algumas omissões.

Recordo a capacidade intelectual e pedagógica de Jorge Miranda, Marcelo Rebelo de Sousa, Marques Guedes, Menezes Cordeiro, Bracinha Vieira, Lebre de Freitas, Romano Martinez, Fernanda Palma, Curado Neves, Rui Pereira e Raúl Soares da Veiga.

Não estranhe o leitor a falta de alusão a Freitas do Amaral, André Gonçalves Pereira, Garcia Pereira ou José António Barreiros, de quem não fui discípulo.

Um Mestre que se impõe mencionar é Saldanha Sanches, que me ensinou Finanças Públicas e Direito Financeiro. Foi um enorme privilégio ter sido seu aluno.

Mais conhecido como fiscalista, é também um comentador de gabarito sobre os temas jurídicos em geral.

Há pouco tempo, referiu-se àquilo a que chamou o “bunker judicial”.

Se bem entendi as suas palavras, defendeu que se deve abandonar o isolamento judicial, o corte com o exterior assim como o divórcio entre a carreira dos juízes e as demais actividades jurídicas.

De acordo com a Constituição, os tribunais aplicam a lei em nome do povo. Tal leva até muitos juízes a iniciar as suas sentenças, com a frase: “Em nome do Povo Português, decido”.

Afirmou Saldanha Sanches: “Pobres do povo e dos tribunais se o povo deixa de se reconhecer nas suas decisões judiciais”.

Concordo, de uma forma geral, com o que ele preconiza.

Mas talvez não seja tão pessimista quanto ao sistema actual.

A escolha dos candidatos a juízes é realizada de modo muito aberto, através de um júri integrado por profissionais de diversas áreas.

Faz-se até uma entrevista psicológica, de carácter eliminatório. Certa vez, uma psicóloga, que efectuou várias entrevistas, disse algo de curioso. Deve ser difícil ser juiz quando, por falta de maturidade, ainda nem sequer se está habituado a decidir entre beber água ou vinho.

É verdade que grande parte da formação é levada a cabo por magistrados. Mas são realizadas acções com profissionais dos mais diferentes campos do saber. Médicos, psicólogos, polícias, sociólogos, quadros superiores da administração pública, jornalistas, professores e contabilistas trocam impressões com os futuros juízes.

Reconheço que há aperfeiçoamentos a levar a cabo, nomeadamente no domínio da formação de formadores. Para se ensinar, tem que se saber como se faz a transmissão de conhecimentos e a troca de experiências. Não é suficiente a boa vontade.

Antes de ser designado docente da Ordem dos Advogados, frequentei um curso de formação de formadores da área jurídica, leccionado por dois professores treinados nos Estados Unidos da América. Nunca me sentiria capaz de dar aulas a advogados estagiários se não tivesse recebido prévia instrução.

Este é um campo que importa desenvolver.

Por outro lado, diz Saldanha Sanches que algo está mal quando os juízes não conseguem elaborar decisões com suficiente força convincente para poderem gozar de um mínimo de acatamento.

Desconheço se isso sucede muitas ou poucas vezes. Sei que é impossível agradar a gregos e a troianos e que as sentenças são sempre susceptíveis de crítica. Mas é dever do juiz explicar por escrito os motivos pelos quais tomou determinada decisão. Tem sido posta a maior atenção nesse aspecto.

 

*Juiz 

( h j f r a g u a s @ h o t m a i l . c o m )


MENTIR AO JUIZ

Jornal “Correio da Manhã”,

25 de agosto de 2003.

Helder João Fráguas*


Um colega meu diz que o tribunal é o sítio onde mais se mente. A primeira mentira que as testemunhas dizem é afirmar: “Juro por minha honra dizer a verdade”.

Outro juiz, que percorreu inúmeras comarcas de norte a sul do país, desenvolveu determinadas teorias sobre as zonas de Portugal onde as pessoas mais mentem.

Sou um pouco céptico quanto a estas generalizações, mas a verdade é que grande parte do trabalho de um juiz é tentar descobrir quem está a falar verdade e quem mente.

Aquele que for testemunha e mentir perante um juiz sujeita-se a pena de prisão até três anos ou multa até trezentos e sessenta dias.

Raramente, remeto esses casos ao Ministério Público.

Mas já o fiz algumas vezes.

Numa ocasião, um indivíduo, ainda jovem, era acusado de conduzir um automóvel, ter avistado a brigada de trânsito e parado a viatura uns metros antes, junto à berma. Trocou de lugar com a mulher, que ia a seu lado, e quando passaram pela autoridade, foram mandados parar. Os agentes nem quiseram saber da senhora, que ia ao volante. Submeteram o homem ao teste de alcoolemia e este revelou um valor altíssimo.

Em tribunal, os três agentes relataram, pormenorizadamente e com toda a coerência, que tinham visto o arguido a conduzir o veículo.

Entrou depois a mulher dele, que se oferecera para testemunhar e que não tinha escutado o depoimento dos guardas.

Alertei a senhora, como era meu dever, que ela não era obrigada a ali estar, já que era casada com o arguido. Mas também a adverti de que, caso pretendesse depor, teria de jurar dizer a verdade. Ela aceitou ser testemunha.

Contou que sempre fora ela a condutora do automóvel e que o marido não pegara no volante. O que ela dizia não oferecia a menor credibilidade.

Eu compreendia o interesse dela em defender o arguido. O homem era motorista profissional e caso ficasse com a carta apreendida, provavelmente perderia o emprego.

Não tive outro remédio.

Mandei a testemunha sentar-se nas cadeiras destinadas ao público e ditei a sentença.

Condenei o acusado a uma pena de multa e à proibição de conduzir pelo período de três meses. Ao mesmo tempo, remeti para o Ministério Público o caso do depoimento da sua mulher, que me parecia corresponder a uma mentira.

A senhora baixou a cabeça e chorou convulsivamente.

Não só o marido iria ficar desempregado como ela teria um processo criminal às costas por falso testemunho.

Têm sido feitos numerosos estudos sobre os sinais reveladores de quem mente.

É preciso prestar muita atenção a cada palavra empregue.

Em 1995, dois filhos de um casal da Carolina do Sul, nos Estados Unidos, desapareceram. Naquele momento de desespero, o pai disse: “São ambas umas crianças maravilhosas”. A mãe afirmou: “Eles eram a minha vida”. O tempo verbal empregue, reportando-se ao passado, demonstrava que ela sabia que os meninos tinham morrido. Na realidade, a progenitora, Susan Smith, tinha-os afogado e escondido num lago.

Quando alguém diz a verdade, existe harmonia entre as palavras, o movimento das mãos, a expressão facial e o tom de voz. Uma discrepância entre estes factores manifesta normalmente uma mentira. Os movimentos musculares da testa e do canto interior das sobrancelhas são vitais, pois dificilmente são controláveis voluntariamente.

Note-se que o arguido não sofre qualquer sanção se mentir. Nem isso faria sentido. Imagine-se que ele nega ter praticado o crime, mas acaba por ser condenado. Seria ilógico estar depois a penalizá-lo de novo por não ter dito a verdade.

 

*Juiz 

( h j f r a g u a s @ h o t m a i l . c o m )

MÉDICOS, JUÍZES E LOUCOS

Jornal "Correio da Manhã"

10 de março de 2003



O meu amigo Carlos é psiquiatra e tem imensa dificuldade em compreender como é que eu, enquanto juiz, posso ordenar o internamento compulsivo de um doente mental. Para ele, a decisão de mandar internar alguém é um acto médico e a avaliação respectiva compete a um psiquiatra. Um magistrado não se pode sobrepor a uma análise clínica da situação. A questão parece-lhe tão absurda como um médico poder mandar um criminoso para a cadeia.


O problema é delicado. Não é por acaso que nos regimes totalitários, os internamentos forçados são usados como instrumentos de repressão política. Ficaram conhecidos os hospitais psiquiátricos da União Soviética, onde eram encerrados adversários do ‘establishment’. No Estado Novo, em Portugal, a expressão "medida de segurança" ficou associada a um meio insidioso de aprisionar os indivíduos considerados perigosos para o regime.

Um médico nunca deve dizer que manda internar uma pessoa, mas sim que lhe propõe o internamento. Em última análise, a decisão compete ao paciente, que pode recusar-se a permanecer no hospital.

Todavia, mesmo nas democracias mais desenvolvidas, há que proteger a sociedade de indivíduos que, não sendo criminosos, são doentes que se recusam a submeter-se ao respectivo tratamento médico. A decisão de internamento deve competir, nesses casos, a uma entidade imparcial: o juiz. Nalgumas situações, o que está em causa é até a protecção do próprio paciente.

Recordo-me do caso de um homem que não comia há quatro dias. A irmã dirigiu-se, aflita, ao tribunal. Ele estava convencido de que o queriam envenenar e, por isso, não ingeria absolutamente nada. A sua vida corria perigo evidente. 

Sumariamente, apreciei o processo e mandei de imediato passar os respectivos mandados de internamento compulsivo com carácter urgente. Ao fim de uns dias, o doente já se encontrava compensado e aceitou, de livre vontade, prosseguir o tratamento.

Os exemplos multiplicam-se.

Um indivíduo recusava lavar -se, pois, segundo ele, as torneiras emitiam raios laser. Os filhos pediam o internamento. Considerei que o caso não assumia absoluta urgência. Dei a oportunidade de o homem ser representado por advogado, que lhe nomeei oficiosamente para aquele processo e determinei a realização de uma avaliação clínica. No fim, cheguei à conclusão que os filhos tinham razão: justificava-se mesmo o internamento. Mas as cautelas previstas na lei fazem sentido: nalgumas circunstâncias, poderão os filhos estar de má-fé e tentarem apenas ver-se livres do progenitor.

Tomei igualmente conhecimento de um caso de cariz oposto a este. Uma senhora tomava banho variadíssimas vezes ao dia. Mesmo assim, julgava cheirar muito mal. Por isso, estava convencida de que a queriam matar, para colocarem termo àquele odor desagradável.

Uma outra senhora entretinha-se a atirar objectos do sétimo andar de onde vivia. O perigo era óbvio.
Uma estudante universitária vivia num quarto alugado situado num apartamento que acolhia alunos de outras faculdades. A rapariga entrou em conflito com o senhorio, que alegava que a rapariga gastava demasiada electricidade e gás. Encontrando-se sozinha em casa, a jovem regou os compartimentos com gasolina e ateou fogo, ausentando-se logo de seguida. A conclusão foi que a moça não estava bem.

Um homem resolveu suicidar-se e disparou um tiro de pistola sobre a própria cabeça. Felizmente, salvou-se. O pior é que a arma era ilegal e ele não tinha licença de uso e porte da mesma. A polícia participou o caso ao tribunal. O indivíduo sobrevivera, mas arriscava-se a ir parar à cadeia. No entanto, o processo foi arquivado por se decidir que ele não se encontrava de posse plena das suas faculdades mentais.

CONVENCER O JUIZ

  Jornal "Correio da Manhã", 1 de setembro de 2003. Quando o julgamento está prestes a chegar ao fim e já se ouviram todas as test...